sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Crise migratória na Noruega chega pela Rússia, reforça agenda anti-imigração e toma recursos da cooperação

Há poucos dias da Conferência sobre Clima, governo corta recursos da sociedade civil e da política de clima&florestas, para lidar com o afluxo de imigrantes na Noruega

É o caminho mais seguro para chegar ao norte da Europa, mais do que o Mediterrâneo ou os Balcãs. O boato rola solto entre os "piratas", que cobram até 1500 dolares para transportar imigrantes de Murmansk, Rússia, até o posto de controle de Storskog, na cidade de Kirkenes, Noruega, a gélidos 70º de latitude.


A onda migratória que assola a Europa tem diferentes faces e rotas. A fronteira Russia-Noruega se tornou atualmente uma das rotas mais intensas de migração. Cerca de 200 migrantes cruzam a fronteira em Storskog todos os dias - de bicicleta. A intensidade preocupa o prefeito da pacata cidade de 3.500 habitantes, que se vê subitamente tomada de pessoas de diferentes países e culturas. No ano passado inteiro, foram apenas 20. Este ano, está tudo fora de controle.





Além de sírios há também muitos jovens afegãos, eritreus, turcos e pessoas vindo do Cáucaso e Oriente Médio. Parte dos imigrantes já vivia anteriormente na Rússia.

De bike, sem refletor

A curiosidade é o modal de transporte para fazer a travessia: os imigrantes pedalam cerca de 20 km da vila russa de Nikel até o posto de fronteira norueguês de Storskog. Isto porque o acordo transfronteiriço entre Noruega e Russia obriga as pessoas a cruzarem a fronteira "sobre rodas", ou seja, é proibido cruzar a fronteira a pé.

Mas as bikes estão longe de ser "aquela caloi". A maioria pedala na escuridão sem qualquer proteção, refletor ou mesmo freio. Quando chegam à Noruega, têm suas bikes apreendidas, por falta de equipamento obrigatório. No entanto, o fluxo é tão intenso que a polícia não tem nem capacidade de distinguir as bicicletas ilegais das regulares. O resultado é a cena insólita de centenas de bikes apreendidas amontoadas em um contêiner como lixo.



Russia quer ver o circo pegar fogo?

Há quem diga que a rota ártica para entrar na região do Schengen virou atrativa porque a Rússia não vem aplicando suas próprias leis. Na Rússia, teoricamente é proibido permanecer na zona de fronteira sem portar um visto de entrada no Schengen. De acordo com o prefeito de Sør-Varanger, onde se situa o posto de fronteira de Storskog, há seis meses atrás essas pessoas que hoje chegam teriam sido presas na Rússia por permanecerem na zona de fronteira sem visto.

Diz a lenda que os russos têm interesses geopolíticos mais profundos, e que a vista grossa faz parte de uma estratégia para desestabilizar a Noruega e por tabela a Europa. Muitos dos imigrantes são informados que devem sair da Rússia em dez dias, e que é relativamente fácil entrar na Noruega pela fronteira norte.

Após onda de solidariedade, crise bate à porta e reforça agenda política anti-imigração

Há pouco tempo atrás, na época em que circulava nas redes a foto do menino Aylan Kurdi morto em uma praia na Turquia, todos os líderes dos partidos políticos noruegueses eram uníssonos em declarações de solidariedade aos refugiados sírios. No rastro dos movimentos da chanceler alemã Angela Merkel, a maioria dos políticos defendia a necessidade de acolher os sírios de braços abertos para que pudessem reconstruir suas vidas na Noruega de forma digna.

Some-se a isso o clima de campanha eleitoral que reinava na época. As eleições municipais na Noruega ocorreram em meio ao ápice da crise migratória e dos acidentes, e a solidariedade para com os sírios dominou o tom das campanhas, tornando particularmente antipática ao eleitorado qualquer declaração que insinuasse maior controle ou rigidez das fronteiras.

Sobrou boa vontade e braços abertos aos sírios durante os debates eleitorais em setembro.
Agora que a situação aperta, o tom do discurso muda.

Agora que a onda está quebrando na praia, o discurso parece mudar. Em 2015, até 20 de outubro, 17.800 imigrantes já haviam chegado. Em 2014, o total foi de 11.480.  Há um clima de urgência para aumentar o controle das fronteiras e equipar melhor o Estado para lidar com os refugiados. No parlamento norueguês, há atualmente ampla maioria, tanto de governo como oposição, favorável ao enrijecimento da política de imigração.

A lista de medidas em discussão no parlamento incluem p.ex. corte de verbas sociais, fast-track para deportação de imigrantes envolvidos em práticas criminais, aumento do tempo de moradia para obtenção de visto permanente, acordos de retorno para viabilizar a volta de um número maior de pessoas para seus países de origem, entre outros. Além disso, há uma série de medidas para manter as pessoas vivendo, ainda que temporariamente, no país, o que inclui no mínimo moradia e alimentação, apoio aos centros de acolhimento de asilados e iniciativas de integração à sociedade.

No entanto, embora haja consenso quanto à necessidade de endurecer as regras de imigração, a forma como o governo pretende levantar os recursos para viabilizar essas mudanças está longe de ser consensual. Na última sexta-feira (30/10/15), o governo da coalizão direita-ultradireita encaminhou ao parlamento um adendo ao Orçamento de 2016 visando aumentar recursos para lidar com a situação que se agravou nos últimos meses. A estimativa de gastos adicionais está em torno de US$ 1,1 bilhão, levantados de diferentes formas.

Uso do capital do Fundo do Petróleo pela primeira vez

Uma dessas formas é usar o Fundo do Petróleo norueguês. Cerca de US$ 127 milhões serão sacados do fundo para lidar com a crise migratória na Noruega. Uma combinação de aumento súbito de despesas pela imigração descontrolada, com a redução das receitas estatais em razão da baixa do petróleo, forçou o governo a usar, pela primeira vez, recursos do montante principal do Fundo do Petróleo. Até agora apenas os rendimentos do fundo vinham sendo utilizados.

No primeiro trimestre de 2015, o fundo conseguira rendimento recorde de 5,3% num total de US$ 46 bilhões. No segundo trimestre, mergulhou para um prejuízo de 0,7%, ou US$ 8,5 bilhões. Nessa situação, usar o montante principal do fundo soberano destinado às futuras gerações dos noruegueses para financiar o aparato de recebimento de imigrantes vindos do mundo todo é uma medida provocativa para os setores mais xenofobistas da sociedade.

Sociedade civil e meio ambiente pagam a conta da crise migratória

Outra forma de obter recursos é através de cortes substanciais, no valor de US$ 488 milhões, no orçamento dedicado à cooperação internacional, apoio à sociedade civil e política de clima e meio ambiente. Enquanto os recursos canalizados para o fundo de investimentos Norfund, que apóia empresas norueguesas fora da Noruega, permanece inalterado, o apoio para organizações da sociedade civil é cortado em 65%.

Ministra das Finanças Siv Jensen (FrP) e Primeira Ministra Erna Solberg (Høyre) apresentaram proposta de adendo ao Orçamento 2016 com severos cortes no apoio a sociedade civil, clima e meio ambiente
Com base nas regras da OCDE, o governo classifica despesas com alimentação e moradia de imigrantes na Noruega sob a rubrica de "cooperação internacional". Nos anos anteriores, essa despesa equivalia a cerca de 5% do orçamento da cooperação internacional. Com a atual proposta do governo, essa parcela pula para 20% do orçamento da cooperação, às custas de outras políticas como apoio a desenvolvimento de longo prazo, apoio à sociedade civil norueguesa, incidência política e fortalecimento da democracia na Noruega. Ou seja, um tremendo corte nos recursos para as ONGs norueguesas.

A América Latina foi praticamente cortada do mapa. Recursos destinados à cooperação bilateral e regional com países latino-americanos sofreram um corte de 79% comparados com 2015, após já terem sofrido um corte de 36% comparados com 2014. A embaixada norueguesa na Guatemala será simplesmente fechada. Iniciativas apoiadas pelas embaixadas norueguesas em diferentes países devem também ser cortadas, a exemplo do programa de apoio aos povos indígenas da embaixada norueguesa no Brasil, importantíssimo para a mobilização dos povos indígenas e seus aliados.

Evolução da cooperação bilateral com América Latina tem sido só ladeira abaixo. Deve se encerrar em 2016.

Clima e Florestas sofre cortes às vésperas da COP Clima em Paris

Recursos destinados para processos internacionais na área de meio ambiente e desenvolvimento sustentável também sofreram um corte de 30%, bem às vésperas da COP de Clima em Paris. Cai especialmente mal para os expressivos esforços diplomáticos que a Noruega vem envidando para consolidar seu papel de liderança no campo ambiental. Em setembro, a ministra do meio ambiente Tine Sundtoft esteve no Brasil para elogiar os esforços do governo brasileiro na redução do desmatamento na Amazônia e louvar os feitos do Fundo Amazônia.

Ministras de meio ambiente do Brasil e Noruega se encontraram em setembro para louvar os
resultados alcançados na cooperação no tema de florestas.
A política de Clima&Florestas da Noruega, principal fonte de apoio financeiro ao Fundo Amazônia, sofrerá um corte de 13%. O corte deve recair sobre projetos e programas com instituições multilaterais, sociedade civil, bem como pesquisa e intercâmbio de conhecimento sobre o tema de REDD+.

Menos ambição para a transição energética

Recursos destinados a energia renovável também entraram na faca. 65% dos recursos alocados para o tema evaporaram do novo orçamento. O governo pretende adotar um "nível menos ambicioso" de cooperação na área de energia renovável, e contratos em andamento podem ser encerrados. Os cortes devem recair principalmente sobre projetos cujos "resultados alcançados são fracos".

Os recursos do Norfund, porém, destinados a empresas privadas norueguesas interessadas em investir na área (geralmente na construção de hidrelétricas em outros países, consideradas "fontes limpas"), foram integralmente mantidos. É o modelo de "cooperação de resultado" dando frutos - no caso, negativos.

Protestos em Oslo

As organizações da sociedade civil reagiram fortemente à proposta orçamentária do governo.  Na última quinta-feira (29/10/15), foram às ruas protestar contra os cortes no orçamento da cooperação.

Protesto de organizações da sociedade civil em frente ao parlamento, enquanto o governo anunciava cortes orçamentários

De acordo com a carta assinada por 21 organizações da sociedade civil norueguesa, "o governo propõe cortes dramáticos na cooperação internacional de longo prazo para cobrir as despesas crescentes com a crise migratória. Nós, que ora protestamos, entendemos que a conta da maior crise humanitária desde a segunda guerra mundial não pode ser paga pela população pobre do mundo. Tememos que os cortes dramáticos propostos levem ao aumento da migração e enfraqueçam o trabalho de prevenção futura de crises. Se os cortes do governo forem feitos, milhões de pobres em países em desenvolvimento serão diretamente afetados."

A primeira-ministra Erna Solberg, no entanto, defendeu o corte na cooperação internacional como forma de reduzir a xenofobia. De acordo com Solberg, a resistência dos noruegueses contra imigrantes e a xenofobia apenas aumentarão se os gastos com imigração forem às custas de outros mecanismos de bem-estar social gozados pelo povo norueguês. "Nós poderíamos ter cortado em programas de bem-estar social, aumentado impostos e taxas, mas entendemos que isso teria aumentado a xenofobia muito mais do que as mudanças que fizemos. Isso causaria muita tensão na sociedade", disse a primeira-ministra.

Centro de acolhimento de asilados da cidade de Munkedal, Suécia, foi queimado
dia 20/10 propositalmente por grupos xenofobistas.
Ela se referiu também à situação de confronto existente na Suécia. Grupos xenofobistas de extrema-direita têm incendiado vários centros de acolhimento de refugiados. Só em 2015 já foram 15 incêndios, todos criminosos.

"Seria ótimo para todos se pudéssemos manter todas as rubricas orçamentárias, mas todas essas coisas dependem do quanto estamos dispostos a estabelecer medidas que contribuam para que o número de imigrantes em busca de asilo diminua. E que não tenhamos reações extremistas, como na Suécia. Na proposição de adendo afirmamos que se a tendência de hoje se mantém, podemos chegar ao número de 110 mil imigrantes em busca de asilo no ano que vem. Não contamos com isso, porque acreditamos que haverá um endurecimento na Europa, mas se esse endurecimento não vier, não haverá muito o que salvar do orçamento como um todo", concluiu Solberg.


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